2007 é um ano de efemérides. Já vos falei dos 60 anos do grande Camaleão, mas há mais gente e, sobretudo, muitos discos que fazem aniversários redondos neste ano da graça de NSJC.
Algures em Março de 1967 (a maior parte das fontes fala do dia 12, algumas do dia 15) foi editado nos EUA um disco que 40 anos depois seria considerado por muita e muito boa gente como o melhor, mais importante e mais influente disco da história do Rock. O disco com uma das capas mais carismáticas jamais editadas, ainda que já sem a banana rosa por baixo do autocolante (parece que a edição de vinil japonesa ainda continua a ser assim; alguém vai ao Japão?). O tal disco do qual se diria (a frase é atribuída a Brian Eno) que "poucos foram os que o compraram, mas todos formaram uma banda". Lamento contrariar o autor, mas conheço pelo menos uma excepção. E até já comprei uns 4 ou 5 exemplares.
Abre com uma caixa de música e uma melodia simples como as de qualquer caixa de música. Uma nota de John Cale abre as portas à voz sussurrada de Lou Reed, que nos fala, como ele explica num disco ao vivo, de uma daquelas manhãs depois de uma noite em que tudo correu mal. Mas não faz mal, porque há sempre alguém que nos vai chamar.
Segue-se um número de perfeito e (aparentemente) convencional good old-fashioned rock'n roll. Piano, guitarra e bateria. Lou Reed conta-nos, com basta e incontestada experiência de causa, como é que se compra droga na baixa de NY. É preciso esperar pelo homem, que vem sempre atrasado. Mas faz-nos sentir muito bem, pelo menos até ao dia seguinte.
Entra Nico, o ícone, e fala-nos de si. Diz para termos cuidado, porque toda a gente sabe o que ele faz para agradar. Vindo de quem assim canta, nem por um segundo duvidamos. You're written in her book, indeed.
E se alguém tinha pedido um violino estridente, uma batida hipnótica e um poema sobre S/M, aqui vêm eles. A partir do livro de Sacher-Masoch, Reed fala-nos de submissão, botas de couro, cintos, chicotes, abandono. Taste the whip, in love not given lightly, taste the whip now bleed for me. Não é exactamente um modelo de subtileza.
Voltamos ao rock e às drogas, agora de forma menos ligeira. Alguém tenta fugir da morte e não vai conseguir. A Teenage Mary que vendeu a alma, a Margarita Pasion que estava a ressacar, a Seasick Sarah e o seu nariz dourado, o Beardless Harry que achava que não lhe aconteceria a ele. Todos fugiram, fugiram, fugiram, em vão.
Mais uma incursão na mundanidade, a lembrar que esta era a banda de Andy Warhol e da Factory, a banda de gente que fazia parte da beautiful people do underground novaiorquino. E que se ri de quem não é cool como eles. De quem não usa cabedais e óculos de sol blasé. De quem se preocupa com a roupa que vai vestir na próxima festa, mais do que com se divertir na festa, engatar uma miúda, ou um miúdo, ou uma miúda e um miúdo, arranjar drogas. De quem vai chorar para trás da porta. De qualquer anti-Cinderella.
O lado B abre com a canção mais forte do disco, e uma das mais marcantes (provavelmente A mais marcante) da carreira da banda. Que fala de drogas (surprise!), de todas as drogas, apesar de o título ser bastante preciso. Das drogas que nos fazem querer ter nascido há mil anos e sermos marinheiros, antes o escorbuto do que o cavalo, que nos faz sentir os filhos de Deus mas vai ser a nossa morte. When the heroin is in my blood, and that blood is in my head, then thank God that I'm as good as dead, then thank your God that I'm not aware, and thank God that I just don't care, and I guess I just don't know. Mai' nada.
Segue-se, estranhamente, canção mais light do disco. Pelo menos musicalmente, esta história da rapariga que está de joelhos e não chora nem pede licença, é a única peça verdadeiramente descontraída do alinhamento. Quem é ela? Uma prostituta ou uma mulher em quem o marido bate? Seja quem for, sabemos que vai voar como um passarinho, e isso já é qualquer coisa.
Da heroína ao amor é um pequeno salto. Afinal, é tudo uma questão de dependências. E sermos o espelho de alguém, reflectirmos o que ele/ela é, sermos o vento, a chuva e o por-do-sol, a luz da entrada que lhe mostra que chegou a casa, é uma dependência. Não como outra qualquer, mas uma dependência.
O disco termina com as duas faixas mais marcadamente experimentais, que prenunciam o caos que chegaria no ano seguinte com
White light/White heat. Na primeira, o anjo da morte convida-nos a escolher entre tudo o que não vale a pena, para nos fazer ver que nada vale a pena e que a melhor escolha é partir.
Choose to go. Na segunda, dedicada ao seu professor preferido (o poeta Delmore Schwartz), Reed faz uma (então) rara incursão na poesia mais social ou política (forma em que atingiria a quase perfeição mais de 20 anos depois, no colossal
New York). O curto texto fala, muito vagamente, do desencanto com uma América conservadora e obcecada com o sucesso. Mas em que, de repente, nos podem levar o nosso belo carro azul e as paredes verdes,
you'd better say so long, hey hey, bye bye bye... Uma América (já) sem as referências humanistas dos pais, aqui transformados em filhos pela soberba de quem descobriu que dinheiro e arsenal são poder.
Apesar da indicação da capa, é hoje mais do que sabido que Andy Warhol pouco ou nada teve a ver com a produção do disco. O trabalho foi fundamentalmente da própria banda, não sendo muito certo o verdadeiro papel que coube a Tom Wilson, creditado apenas com a produção de Sunday Morning. E muito do fascínio e do poder de atracção que este disco exerce sobre quem se cruzar com ele vem exactamente da sub-produção, que nos deixa perceber a qualidade das canções e a forma apaixonada de quem as toca e canta - ainda que nem sempre de forma tecnicamente irrepreensível. Por isso é que convenceu gerações a fio, em 40 anos, que também podem escrever, tocar e cantar canções de rock.
O maior disco de todos os tempos? É possível, ou mesmo provável. Sem este, o disco da minha vida não seria o mesmo, nem por sombras. Mas desse hei-de falar em Junho, quando fizer 35 anos.
Dois docinhos para terminar. Espero que gostem.